Amanda Rossi e Leandro Machado
A intervenção no Rio de Janeiro é inédita. Nunca antes um governador perdeu as rédeas do comando da segurança do seu Estado para o governo federal. Por outro lado, essa é a sétima tentativa de um presidente da República de conter a violência no país desde 2000. Na média, houve um novo anúncio federal a cada três anos.
Em 2000, Fernando Henrique Cardoso lançou o Plano Nacional de Segurança Pública, que vigorou por apenas dois anos. Já Luiz Inácio Lula da Silva lançou, em 2007, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). Além disso, tentou criar o Sistema Único da Segurança Pública - uma espécie de SUS para a área da segurança. Encaminhado para o Congresso Nacional em 2007, está em tramitação até hoje.
Dilma Rousseff não deu continuidade aos planos do seu padrinho político. Em 2012, criou o Programa Brasil Mais Seguro, e, em 2015, o Programa Nacional de Redução de Homicídios. Já Michel Temer deu início ao Plano Nacional de Segurança em 2017. E, agora, a intervenção no Rio.
O levantamento dos diferentes planos federais foi feito pelos especialistas em segurança pública Isabel Figueiredo, Renato Sérgio de Lima e Sérgio Adorno. Em comum, nenhum deles foi capaz de conter o avanço da violência no Brasil.
Um dos sinais do acirramento da crise de segurança é a guerra entre facções criminosas. Antes concentradas no Sudeste - o PCC, principalmente em São Paulo, e o Comando Vermelho, no Rio - essas organizações criminosas se multiplicaram pelo país. Em 2006, no Amazonas, foi criada a Família do Norte; em 2012, o Sindicato do Crime do Rio Grande do Norte; em 2013, no Acre, o Bonde dos 13; por volta de 2015, no Ceará, os Guardiões do Estado - entre vários outros.
Além disso, regiões antes pacatas entraram no foco da violência. Entre 2000 e 2016, enquanto a taxa de homicídio do Sudeste caiu pela metade, a do Norte e Nordeste dobrou. Nas cidades menores, a quantidade de mortes violentas cresceu mais do que nas metrópoles. Na soma do país, o número de assassinatos passou de 47,9 mil para 61 mil por ano.
Mas por que os sucessivos planos federais não foram tiveram sucesso? Especialistas ouvidos pela BBC Brasil apontam algumas razões.
Brasil nunca teve uma política de Estado para a segurança
"A principal razão para os programas não serem efetivos é que falta um desenho claro de uma política de segurança no Brasil", afirma Isabel Figueiredo, especialista em direito constitucional e segurança, membro do Fórum de Segurança Pública.
"Veja o caso da saúde. O grosso do SUS não muda com o governo A ou governo B. Já a segurança está ao sabor da política. A consequência são as interrupções dos programas", compara.
Alberto Kopptike, que atuou na área de segurança pública durante parte dos governos Lula e Dilma, também usa o SUS como exemplo. Para criar o sistema de saúde, primeiro foi elaborado seu conceito e, depois, montada uma estrutura nacional para implementá-lo, como Ministério da Saúde, Datasus, Fundo Nacional de Saúde, Conselho Nacional de Saúde. Para Kopptike, esse mesmo processo precisaria ocorrer com a segurança pública.
"O SUS não é um programa, é a política nacional de saúde do Brasil. Já na segurança pública, foram criados apenas programas", completa Kopptike.
Segundo Figueiredo, o problema vem desde a Constituição de 1988, "que é detalhada nas áreas de saúde e educação, mas pífia com relação à segurança pública".
O trecho constitucional que trata da área apenas lista quais são as forças de segurança, estabelece qual é a função de cada uma e a quem respondem: as Polícias Militar e Civil ficam sob comando dos Estados e as Polícias Federal e Rodoviária Federal estão sob responsabilidade da União. As Forças Armadas não são um braço da segurança pública.
O Susp (Sistema Único da Segurança Pública), idealizado no governo Lula, foi uma tentativa de suprir essa lacuna, mas não avançou. Agora, o Ministério da Justiça diz que vai publicar uma política nacional - embora não dê datas. "Ela reunirá, pela primeira vez, um conjunto de princípios, diretrizes e objetivos de segurança pública a serem implementados pelos três níveis de governo de forma integrada e coordenada", disse a pasta, por nota.
Projetos para segurança são reações a episódios de crise
Na falta de uma política de Estado para a segurança pública, os planos para a área costumam ser lançados em resposta a crises, dizem especialistas.
Foi o caso do primeiro plano de segurança, no governo FHC. Em junho de 2000, um ônibus foi sequestrado no Rio de Janeiro e uma mulher grávida foi feita refém. O resultado foi trágico: a vítima foi morta pela polícia dentro do ônibus; o sequestrador, dentro do camburão. O caso, conhecido como "ônibus 174", chocou o país. O plano federal foi lançado em seguida.
Dezoito anos depois, a intervenção federal no Rio também foi decretada na sequência de cenas de violência durante o Carnaval. No início de 2017, o governo Temer divulgou seu plano de segurança após massacres em presídios do Amazonas e Roraima, que evidenciaram a extensão da disputa das facções no país. Além disso, acredita-se que o Pronasci, de Lula, teve a influência dos ataques do PCC em São Paulo, em maio de 2006.
"Uma política de segurança pública eficiente não é um milagre. Não dá resultado imediato, mas no médio e longo prazo. Não é diferente da educação. O problema é que a crise na segurança normalmente mobiliza de tal forma a opinião pública que muitos governantes acabam indo para uma lógica de curto prazo, paliativa, midiática. Mas o importante é pensar na causa do problema, em algo sustentável", afirma Figueiredo.
"A gente precisa deixar de ser reativo, só atuando em crises, e começar a criar estrutura para mudar a forma como a gente faz segurança pública. Aí, o governo federal tem que entrar com recursos", diz Kopptike.
Não há financiamento garantido
A maior parte dos gastos da segurança pública fica nas mãos dos Estados, que custeiam as Polícias Militar e Civil. Segundo o Anuário de Segurança Pública, o Brasil gastou R$ 81 bilhões com o setor em 2016, sendo que mais de 80% do valor veio dos cofres estaduais. Já o governo federal arcou com cerca de 10% dos gastos.
Segundo especialistas, seria preciso aprimorar o financiamento federal da segurança pública. Em primeiro lugar, a área não conta com garantia de recursos, ao contrário da saúde e da educação, por exemplo, que obtêm uma fatia determinada das receitas do país. Também difere da área penitenciária, que fica com um percentual da arrecadação das loterias.
"Não é razoável que todo o ano seja necessário brigar pelo orçamento da segurança pública. Se não há garantia orçamentária, como fazer ações que dependem de recursos no ano que vem? É muito difícil para a continuidade", diz Figueiredo.
Em tese, desde o plano de segurança pública de FHC, em 2000, o Brasil conta com um fundo específico para financiar o setor na esfera federal. É o Fundo Nacional de Segurança Pública. Porém, ele está longe de dar conta da demanda de financiamento. Em 2016, recebeu apenas R$ 313 milhões - equivalente a 0,4% dos custos totais da segurança pública brasileira ou a 5% dos custos da Polícia Federal.
"É preciso criar um pacto federativo na área de segurança pública, que defina responsabilidades e atribuições do nível federal, do nível estadual e do nível municipal, e também estabeleça padrões e formas de financiamento do setor, de forma consistente e permanente", afirma José Luiz Ratton, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que atuou em um programa de combate à violência no Estado.
"Já existe acúmulo técnico para que isso seja feito, mas sucessivas administrações do governo federal foram incapazes de construir uma agenda política de reformas nesta área, com receio de responsabilização por um tema tão sensível", conclui.
Falta articular a inteligência das diferentes forças de segurança
"O Brasil não tem uma coordenação de inteligência. É um quebra-cabeça de informações. Cada (órgão de segurança) tem um pedacinho para encaixar. O problema é que cada um usa a informação que tem para se valorizar", afirma José Vicente da Silva, coronel reformado da PM, que atuou no programa de segurança de FHC.
Ele dá como exemplo o Rio de Janeiro: "Como enfraquecer as facções criminosas no Rio de Janeiro? É preciso sufocar a logística de acesso a drogas, munição e arma. Para isso é preciso inteligência. Se tem articulação do governo federal com os Estados fica mais fácil identificar o fluxo que alimenta a economia do crime".
Alberto Kopptike concorda. "O PCC, por exemplo, é uma facção nacional. Está em metade dos Estados brasileiros, em outros países da América Latina. (Para enfrentá-lo), é preciso articular a inteligência da segurança pública no Brasil, (juntando informação) das forças federais e estaduais."
PF deveria atuar mais no combate ao tráfico
Três especialistas ouvidos pela BBC Brasil, de diferentes linhas políticas, disseram que a Polícia Federal precisa atuar mais no combate ao tráfico de drogas e armas. Essa é, inclusive, uma das funções da PF previstas pela Constituição.
"A gente precisa de uma Lata Jato das armas, uma Lava Jato das drogas. É legal que a PF esteja combatendo a corrupção - e tem que continuar. Mas é importante que também entre na segurança pública", afirma Kopptike.
"A cobrança por ações da PF para combater a criminalidade violenta tinha que ser mais dura. A Lava Jato é importante. Mas fora isso é preciso priorizar a criminalidade violenta", opina da Silva.
"Nos últimos anos, para bem ou para o mal, a PF fez a escolha do negócio dela: corrupção. De fato, nunca antes nesse país, a PF esteve tão focada no combate à corrupção. Por outro lado, não vemos esse mesmo esforço da força no controle das fronteiras (por onde entram armas), que é atribuição dela e acaba atingindo população", diz Figueiredo.
Cerca de um quinto das operações da Polícia Federal em 2016 foram relacionadas ao tráfico de drogas - 121 de um total de 550.
Corrupção policial nos Estados
Outro ponto apontado pelos especialistas é a dificuldade de combater a corrupção policial nos Estados, área que deveria contar com a intervenção federal.
"Nenhuma polícia pode ser eficiente se for corrupta. O governo federal poderia tornar o combate à corrupção policial uma prioridade. Inclusive, enviar a PF para investigar a relação das polícias com o crime organizado", opina o coronel reformado José Vicente da Silva.
Alberto Kopptike ressalta a importância da União no combate à corrupção policial citando o exemplo da Inglaterra, que faz uma avaliação técnica das polícias. Isso poderia ser feito no Brasil, segundo ele. "Precisamos de uma espécie de Lei de Responsabilidade Fiscal, mas de gestão das polícias."
Em 2017, por exemplo, um policial civil do departamento de narcóticos de São Paulo, o Denarc, foi acusado de roubar e vender drogas no centro da capital paulista, além de avisar traficantes da Cracolândia sobre operações que iriam acontecer na área. Ele foi pego em uma escuta telefônica conversando com um homem apontado como revendedor de drogas na região.
As polícias já têm órgãos de controle e investigação de seus quadros, como as corregedorias. Porém, críticos costumam dizer que, pela proximidade com as corporações, sua atuação não é forte o suficiente. Outro serviço de controle social são as ouvidorias - em São Paulo, por exemplo, o ouvidor é escolhido pelo governador do Estado a partir de uma lista tríplice de candidatos votados por grupos de defesa dos direitos humanos.
Prisões lotadas favorecem expansão de facções
O sistema prisional superlotado é um caldo propício para o surgimento e crescimento das facções. Algumas delas, como o PCC, surgiram nos presídios, reivindicando melhorias das condições internas. Alianças, cisões e ordens de crimes costumam ocorrer dentro das unidades prisionais. Novos membros, inclusive, costumam ser "batizados" atrás das grades.
Os planos de segurança federais não conseguiram reverter esse problema. Pelo contrário, o número de presos no país não para de aumentar: passou de 232 mil pessoas, em 2000, para 727 mil, em 2016. Já o número de vagas é cerca de metade do total de detentos.
"A estrutura prisional superlotada acaba fomentando a abertura de franquias de facções de mais nome. É como uma cooperativa de crime e proteção", afirma José Vicente da Silva.
Um dos fatores ligados ao alto encarceramento é a política de drogas brasileira. Cerca de um terço dos presos são acusados de tráfico. A minoria, apenas 1 de cada 10 pessoas encarceradas, responde por homicídio.
"Só aumentar a quantidade de presos não adianta, estamos alimentando as facções. Com essa visão, você não apaga os incêndios, mas coloca gasolina. É preciso ver a qualidade de quem está sendo preso - traficantes de armas, homicidas", completa Kopptike.
A maior parte do sistema prisional é gerido pelos Estados. No governo Lula, foram criados os presídios federais, menos lotados e com melhores condições de segurança. No entanto, são apenas quatro, e abrigam uma ínfima parte dos presos - menos de 500.
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