Ligia Guimarães
Faz pouco mais de uma semana que o maior pesadelo da cearense Maria Inamá Araújo Santiago, 32 anos, virou realidade. Seu filho caçula, Arthur, faleceu aos três anos e dois meses de idade com suspeita de covid-19 na noite de 31 de março, após 8 dias de internação em um hospital em Fortaleza, no Ceará.
Um dia após enterrar o filho com todas as restrições do protocolo funerário para pacientes mortos pela doença - à distância, de caixão fechado, sem velório e sem roupas, já que ninguém pôde tocar em seu corpo depois que saiu da UTI - , veio o resultado do teste: negativo. O laudo apontou que foi uma pneumonia, e não o novo coronavírus, a causa da morte do menino.
A notícia, ainda que tardiamente, trouxe algum alívio para a família, segundo a mãe. "Fiquei aliviada pelo fato de, graças a Deus, ele não ter sido acometido por mais um vírus", diz ela, acrescentando que o medo de infectar o menino pressionou toda a família.
"Minha filha mais velha foi a que apresentou os primeiros sintomas, e ficou todo mundo em cima, com medo de que ela passasse para o Arthur, para ela usar máscara, para não entrar em contato com ele. Fico feliz que ela não vai precisar carregar essa culpa."
A história de Inamá e Arthur tinha sido marcada por uma outra epidemia global: a do vírus da zika, doença cujos sintomas a mãe identificou ainda durante a gravidez na cidade de Maracanaú, município de 209 mil habitantes na região metropolitana da capital cearense, onde mora com o marido e três filhas. A cidade tem 20 casos confirmados da covid-19, segundo a Secretaria de Saúde do Estado do Ceará (Sesa).
Arthur nasceu com microcefalia e outras alterações causadas pela síndrome congênita da zika que limitavam o desenvolvimento da criança, tanto física quanto intelectualmente. O mais grave e constante eram os problemas respiratórios: a pneumonia que matou Arthur, a mais forte de todas, foi a sétima que o menino teve em vida, lembra a mãe.
A notícia de que não era covid-19 a causa da morte do menino, veio tarde demais para evitar o que, para a mãe, é uma das lembranças mais traumáticas relacionadas à perda. Depois de seis dias sem ter tocado em um fio de cabelo sequer do filho e vendo-o apenas uma hora por dia através de uma vidraça, internado na UTI, Arthur foi enterrado também à distância da família, sem velório e sem roupas, já que a funerária recusou-se a vesti-lo. Ele foi colocado nu no pequeno caixão, sob risco de infecção.
A última imagem que a mãe teve do filho, ainda que sem tocá-lo, foi a do seu corpo sem vida levado em uma maca para a capela do hospital, quarta-feira (1).
"Vim para casa na terça-feira (31) já sabendo que ele poderia morrer a qualquer momento, a pressãozinha dele estava baixa e os órgãos estavam entrando em falência. Os médicos sempre foram muito sinceros comigo. Quando foi umas 23h30 me ligaram de lá, dizendo 'mãe, venha pra cá, que a notícia não é boa'. Fui para lá rapidamente e, infelizmente, era a notícia que eu já esperava", lembra.
"Às 7h da manhã fomos pegar o corpinho dele, e eu levei uma roupinha. Falaram não, a gente não vai poder vestir a roupa no seu filho, a gente não pode tocar o corpo dele. Ele vai para o caixão do jeito que ele está lá. O corpo estava na capela trancado e eu não pude nem ver o pessoal colocando o corpo dele no caixão".
Inamá diz entender que as restrições fazem parte do protocolo de saúde relacionado à doença. Ele foi internado com febre e falta de oxigênio. Mas ela defende que medidas simples por parte dos médicos e técnicos que trabalham no atendimento podem poupar outras famílias do mesmo sofrimento.
"Eu disse 'poxa, porque vocês não me pediram para eu levar roupa na UTI, porque a partir do momento que ele saísse da UTI ninguém poderia tocar mais no corpo dele mais'? Meu inocente foi enterrado peladinho", lamenta a mãe, que diz que temeu pelo pior quando viu que o estado do menino só piorava.
"Me foi dito que o resultado do exame saía em 48 horas. Eu dizia 'doutor, pelo amor de Deus, o meu filho está indo embora. Vamos dar prioridade nesse exame, não porque ele é uma criança especial, mas porque ele está morrendo'", conta. "Eu sou uma mãe, eu cuidava dessa criança 24 horas por dia, ele era o ar que eu respirava. Nos últimos 6 dias da vida dele (a partir do momento em que ele foi internado na UTI) eu não pude tocar em nenhum fio de cabelo do meu filho."
"Por isso eu aceitei falar sobre isso. Para mostrar e evitar que isso aconteça com outras pessoas. Que esses laboratórios entendam que não são só números de demanda, são pessoas", diz. "Foram nove dias para sair o resultado."
Procurada pela reportagem, a Sesa, por meio do Laboratório Central de Saúde Pública do Ceará (Lacen) informou que, desde o primeiro caso de covid-19, o Lacen trabalha para emitir em tempo hábil os laudos dos casos suspeitos da patologia.
"Inicialmente, a demanda era de até 100 exames por dia, subindo para 500 no dia 18 de março", explica, em nota. "O empréstimo de dois equipamentos da Unidade Federal do Ceará permitiu que o número de exames aumentasse para 320 por dia, incluindo os testes inconclusivos, que chegam a 10% e precisam ser repetidos."
A Sesa estima que, entre 30 a 60 dias, a capacidade para realização de exames laboratoriais será triplicada, e serão priorizados os exames em pacientes internados em UTIs e enfermaria, em profissionais de saúde e em pessoas que vieram a óbito com suspeita da doença. O Ceará tem, até o dia 9 de abril, 1387 casos confirmados do novo coronavírus, com 53 mortos. Além do novo coronavírus, o Ceará também passa por um surto de H1N1.
Coronavírus causa medo e preocupação em mães de filhos com síndrome da zika
Considerada uma epidemia global pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 2016, a zika atingiu predominantemente famílias de baixa renda, que trabalham na informalidade e moram nas periferias do Nordeste, em regiões com saneamento precário e grande presença de mosquitos.
Os cuidados com o filho vítima da síndrome congênita do vírus Zika transformam-se em atividade em tempo integral da maioria das mães, que precisam deixar de trabalhar. Para monitorar a saúde de Arthur, Inamá operava em casa aparelhos como uma profissional de enfermagem: oxímetro para medir a taxa de saturação no sangue, oxigênio quando faltava ar para o filho e aspirador, quando ele engasgava.
O marido de Inamá tem 46 anos e trabalha como motorista de ônibus fretado, atividade que não parou durante o isolamento social. "Todo dia ele chegava em casa e já tirava as roupas e deixava no quintal, com medo de passar alguma coisa para o filho. Redobramos os cuidados para que não atingisse o Arthur."
A notícia sobre a morte do pequeno Arthur se espalhou rapidamente pelos grupos de WhatsApp que reúnem mães de crianças com a síndrome da zika em diversos Estados do Nordeste, aumentando o medo de que uma nova doença coloque as vidas de seus filhos em risco. As notícias sobre a nova doença causaram grande preocupação e medo.
E esse medo se justifica, na opinião do neurologista infantil André Pessoa, do hospital Albert Sabin, que considera que as crianças com a síndrome da zika são, sim, um grupo de risco também para a covid-19, principalmente em razão dos muitos problemas respiratórios, dificuldade para engolir e desnutrição, características comuns às crianças com a síndrome.
"Eu não tenho dúvida de que eles são população de risco para uma evolução grave da covid-19", afirma Pessoa, pesquisador com uma série de artigos publicados a respeito da zika, inclusive em parcerias com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos.
"A principal causa de mortalidade entre essas crianças é a pneumonia aspirativa, porque todos os pacientes avaliados até o momento tem disfagia, dificuldade de deglutição. A comida entra mas vai para o caminho errado: a comida entra, mas em vez de ir para o estômago, vai para o pulmão".
Rotina rígida para proteger criança
Luciana Arraes, da Associação Filhos de Bênçãos, que reúne mães de crianças com a síndrome da zika no Ceará, mora com marido, mãe e filha em Apuiarés, no interior do Ceará. Todos adotaram uma rotina muito rígida de isolamento e higienização para proteger a pequena Ana Lis, de 4 anos.
"Eu estava há 14 dias sem sair de casa, só quem saía era meu esposo e, quando saía, fazia toda a higienização, lavava todas as embalagens, frutas e verduras para entrar em casa, e ia direto para o banho. Só tive que retornar ao trabalho por um dia", afirma ela, que trabalha como agente de microcrédito urbano e entrou de férias. "Nem no quintal a gente vai. Aqui não tem casos confirmados, mas os testes demoram tanto para sair que pode ter e a gente não sabe".
"Da minha família, só uma pessoa sai de casa quando é estritamente necessário e, quando chegam, realiza todo o processo de higienização". Arraes diz que outro temor das mães é que, diante da escassez de equipamentos e recursos para atendimento, seus filhos sejam preteridos em favor de adultos mais saudáveis.
Pessoa destaca o fato de que a experiência de ser uma família atingida pela zika e lutar pelo tratamento dos filhos com pouco dinheiro e muitas dificuldades deixa sequelas emocionais que, agora, são agravadas pela covid-19. "São famílias muito traumatizadas, carregam consigo um trauma. Mães de crianças com zika têm mais depressão e ansiedade, tudo muito legítimo."
A presidente da Associação Família de Anjos do Estado de Alagoas (Afaeal ) em Maceió, Alessandra Hora, já oficializou diversos pedidos às secretarias estadual e municipais de saúde para que as crianças com a síndrome congênita sejam priorizadas nas vacinas contra a H1N1, junto com os idosos.
"Mas até agora, nenhuma criança tomou a vacina. Esse público é um público de risco. E é de competência do presidente, do ministro, do governador e do prefeito. Acordem, são 45 milhões de pessoas com deficiência no Brasil e esse público não está sendo citado nas medidas de prevenção", diz Hora.
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