Felipe Souza
Quatro das 12 equipes que formam as categorias de base do Flamengo estão em treinamento para os campeonatos que começarão em março: sub-14, sub-15, sub-16 e sub-17. Mas as duas últimas tiveram o treino desta sexta-feira cancelados por conta das fortes chuvas que atingiram o Rio no dia anterior, e foram autorizados a voltar para suas cidades mais cedo.
Isso pode ter evitado mais mortes no incêndio que atingiu o alojamento no Ninho do Urubu, no Rio de Janeiro, que deixou 10 meninos mortos e três feridos - um deles em estado grave.
A maior parte do elenco de base do clube, porém, está de férias.Mas como é a rotina desses meninos e como eles são contratados por grandes times de futebol como o Flamengo? A BBC News Brasil ouviu especialistas e funcionários do Flamengo para saber como é o dia a dia dos adolescentes que sonham em ser atletas profissionais.
Quem pode morar no alojamento dos clubes?
Os alojamentos são construídos pelos clubes para que os jogadores de outras cidades possam morar próximo ou dentro do local onde treinam. Quem mora no Rio de Janeiro, dorme em suas próprias casas e se apresenta ao Centro de Treinamento apenas nos horários de treino ou antes dos jogos.
No fim de semana, até mesmo os meninos alojados voltam para casa. De acordo com funcionários do Flamengo ouvidos pela reportagem, hoje o time tem entre 40 a 45 atletas alojados no clube.
Quando esses adolescentes completam 18 anos, eles deixam a base e passam a morar em apartamentos pagos pelo clube ou por seus empresários.
São 12 categorias, do sub-7 ao sub-20, com cerca de 30 jogadores. Alguns, porém, jogam em duas categorias, como jogadores do sub-15, que também são autorizados a jogar pelo time sub-16 ou sub-17.
O gerente-geral das categorias de base do Vasco, Carlos Brazil, diz que os meninos da base vascaína que moram em áreas consideradas de risco também recebem permissão para dormir no alojamento.
"Quando eles moram numa comunidade muito perigosa, os próprios pais pedem para que a gente os coloque no alojamento. Isso acontece quando eles também moram em cidades muito distantes, como Volta Redonda. Mas quem mora no Vasco tem alojamento, psicóloga e até escola", afirmou Brazil.
Como é feita a seleção desses jogadores?
O comentarista esportivo da ESPN Paulo Calçade diz que hoje a maioria dos jogadores da base é contratada por uma rede de observadores dos clubes - e não mais pelas famosas "peneiras", populares nas últimas décadas.
"Clubes grandes fazem testes com meninos que alguém leva. Alguns já nascem com empresários e ficam com eles até jogar na categoria profissional. Raramente, um clube maior faz uma peneira porque ela acontece de uma forma horrorosa. Você dá 5 minutos para um menino jogar bola e você avalia. Muitas vezes, eles nem se alimentaram direito e viajaram durante horas. O mais correto é período de testes", afirma Calçade.
Em entrevista à BBC News Brasil, o comentarista afirma que hoje as bases da maior parte dos clubes brasileiros não têm a estrutura necessária para cuidar e formar os adolescentes de maneira adequada.
"Eu vejo a base como uma escola, onde você deveria ter todo o tipo de aprendizado. Mas hoje temos depósitos de gente para ver se crescem. É cruel. É uma área que a gente precisa ter uma investigação e um cuidado maior porque a cada 3 mil garotos que tentam essa carreira, apenas um vira profissional", diz Calçade.
O gerente-geral da base do Vasco disse que o time carioca tem quase 20 observadores que percorrem torneios, campeonatos e até peladas no Rio em busca de talentos. Ainda há olheiros do clube em outros Estados.
Mas ele afirma que não há mais "peneiras" no Vasco, assim como na maior parte dos grandes clubes brasileiros.
"No vasco, a gente tem processos de treinamento. Os pais inscrevem os meninos, entregam exames, comprovante escolar e as crianças participam de um treino de duas semanas. Se tiverem boa projeção, eles ficam", afirmou Carlos Brazil.
No clube, segundo Brazil, os adolescentes recebem conhecimento tático, assistência social psicológica e nutrição. Os jogadores só podem morar no clube após completar 14 anos.
"Temos que tomar esses cuidados porque a maior parte desses garotos não se tornam jogadores profissionais, e temos a responsabilidade de formá-los como humanos. Tomamos cuidado até quando eles não passam na captação. Nossa orientação é que eles façam uma nova apenas depois de um ano e que os pais busquem outro clube como alternativa", afirmou.
Quais são as possíveis causas do incêndio?
O vice-governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro, afirmou que o incêndio pode ter sido iniciado por uma pane no ar-condicionado do alojamento onde os jovens dormiam, mas ainda não há informações oficiais sobre as causas.
Um dia antes, o forte temporal que acometeu o Rio na noite de quarta-feira teve forte impacto sobre a sede do Flamengo na Gávea, na zona sul do Rio, causando alagamento, derrubando árvores e destruindo estruturas.
O Centro de Treinamento do Flamengo é uma edificação recente, construída em 2014, e teria uma estrutura moderna, usada tanto pelas categorias de base quanto pela equipe de futebol profissional. Homens do Corpo de Bombeiros continuam a trabalhar no local. O alojamento era formado por contêineres interligados.
Segundo o portal de notícias G1, o Flamengo não tinha certificado de aprovação do Corpo de Bombeiros, que atesta a existência e o funcionamento dos dispositivos contra incêndio previstos pela legislação vigente.
Em nota, a Prefeitura do Rio de Janeiro afirmou ainda que "a área de alojamento atingida pelo incêndio não consta do último projeto aprovado pela área de licenciamento, em 05/04/18, como edificada" e que "no projeto protocolado, a área está descrita como um estacionamento".
Luto
A Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro cancelou todos os jogos que estavam marcados para o fim de semana no Estado.
Em nota, o presidente da República, Jair Bolsonaro, se solidarizou com a dor dos familiares e lamentou a "triste tragédia" que vitimou "jovens vidas que iniciavam sua caminhada rumo à realização de seus sonhos profissionais".
O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, decretou luto oficial de três dias. "Quero manifestar meu mais profundo pesar por essas tragédias e prestar solidariedade às famílias das vítimas. Que Deus os receba e abençoe", disse.
"Obviamente, estamos todos consternados, essa é certamente a maior tragédia que o clube já passou nos últimos 123 anos. O mais importante é a gente se dedicar a minimizar o sofrimento dos familiares", afirmou Rodolfo Landim, presidente do Flamengo.
O número de mortes provocadas por incêndio no Brasil foi, em média, de 991 por ano, entre 2007 e 2016 (último ano com dados oficiais). O recorde foi em 2013, com 1.261 vítimas. Naquele ano, 242 pessoas morreram no incêndio na Boate Kiss, no Rio Grande do Sul.
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