Maria Liz Cunha é professora de gerontologia, área que estuda o processo de envelhecer. Em 2060, Brasil terá 25% de idosos; no DF, serão dois idosos para cada jovem.
Por Mateus Rodrigues, G1 DF
FONTE:G1/DF
Em 2060, o Brasil projetado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) deve se parecer mais com um episódio de "Supergatas" ("Golden girls", no original) que com o futurismo dos "Jetsons".
O leitor que é novo demais para pegar essas referências, inclusive, deve ficar de olho: daqui a quatro décadas, 1 em cada 4 brasileiros será do time da "melhor idade", com mais de 65 anos. No DF, segundo o IBGE, serão dois idosos para cada jovem.
O cenário é similar ao que já existe em países como Itália e Japão – e os desafios enfrentados nesses locais dão alguma dica do que vem por aí. Para entender o fenômeno, o G1 conversou com a enfermeira e professora do mestrado em gerontologia da Universidade Católica de Brasília (UCB) Maria Liz Cunha de Oliveira.
A gerontologia estuda, justamente, o processo de envelhecimento humano. Na entrevista, Maria Liz foi categórica: o Brasil e o Distrito Federal, hoje, não estão preparados para essa sociedade de idosos.
"A sociedade não é complacente, e o idoso não se vê como idoso", indica Maria Liz. No bate-papo com o G1, a professora falou sobre:
- a adequação dos espaços públicos;
- o papel da família e do planejamento nas próximas décadas;
- como driblar a depressão e o isolamento na velhice;
- como resolver a inservação do idoso no mercado de trabalho;
- as diferenças entre a velhice de homens e mulheres;
- como envelhecer bem.
Confira, abaixo, a entrevista:
G1: As projeções do IBGE indicam que, em 2060, o DF terá dois idosos para cada jovem. A tendência é a mesma em todo o país, com rapidez maior ou menor. Estamos preparados para essa inversão na pirâmide etária?
Maria Liz Cunha de Oliveira: O Brasil tinha, como jargão, ser "o país do jovem". A gente não se preparou para esse envelhecimento tão rápido, já nas próximas décadas. O idoso vem tendo muitas perdas, até nas políticas públicas, e não há preocupação com o envelhecimento solitário.
Para saber se estamos preparados, basta olhar ao redor. Nós somos uma capital que não tem uma única instituição de longa permanência do governo. Todas são filantrópicas, ou ligadas a religiões. Elas recebem verba do governo, claro, mas o GDF mesmo só tem hospitais. Não existe um lugar digno, construído para isso, com estrutura ideal.
A gente se cala sobre isso, mas no DF há um índice imenso de suicídios no Lago Sul e em Ceilândia. Ceilândia é a região mais populosa, e o Lago Sul, a região com o maior número de idosos que têm recursos financeiros. Qual o motivo? A solidão, né. Se você vai ao Liberty Mall, nas sessões de filme de arte, ou ao Brasília Shopping, estão lotados de idosos em busca de convívio social.
G1: Além do aumento populacional, é esperado que o perfil desse idoso também mude nas próximas décadas. Já existem esforços para desmistificar essa imagem do senhorzinho encurvado, de bengala, da vovó que faz crochê... Seremos idosos mais 'jovens'?
Maria Liz: Para os próximos 30 anos, estamos falando de um idoso ativo, favorecido pela tecnologia médica do último século – vacinas, exames, medicamentos –, mais lúcido, mais protagonista.
Ao mesmo tempo, é um idoso bem mais sozinho, porque a tendência das famílias é não formar mais aquela estrutura tradicional.
Agora, é importante dizer que o idoso não gosta de ser infantilizado. Quando você vai a um encontro de idosos, é o que acontece: 'dança isso, dança aquilo ali'. O idoso de hoje é rockeiro, ele vem do primeiro Rock in Rio.
Ele veio da Janis Joplin, do Jimi Hendrix. É alguém que usava drogas e, provavelmente, continua usando. Ninguém fala da drogadição dos velhos.
Eu costumo dizer sempre: "idoso não é Papai Noel". Se ele era um serial killer, vai continuar sendo, não vai virar anjo. Ele envelheceu a carcaça, mas por dentro ele é a mesma pessoa que era na fase adulta.
G1: E como a gente prepara a cidade para esse idoso?
Maria Liz: Primeiro, é preciso ter espaços voltados para essa população. O idoso nem sempre pode ir a uma academia qualquer, ele precisa de atividades específicas para a tonicidade muscular dele, para o dia a dia. Hoje, sair pelas ruas de Brasília é um suplício, as calçadas não estão preparadas para idosos, como não estão para gestantes, crianças. Você pode morrer por uma queda.
O número de estacionamentos é irregular, há quadras que têm muitas vagas para cadeirantes, e duas para idosos. Poderiam ser vagas híbridas. Esse conforto de estacionar mais perto, por exemplo, não é respeitado porque acham que o idoso já é descartável.
Além de criar transporte público de qualidade, é preciso conscientizar o motorista. Uma das maiores causas de morte de idosos no DF é atropelamento, porque o idoso acha que dá conta de correr, mas não dá. E aí, o motorista também não reduz a velocidade.
A sociedade não é complacente, e o idoso não se vê como idoso. A gente não se identifica com o que vê no espelho, e sim, com o que sente.
G1: Quando a gente fala em 2060, parece um exercício de futurologia. Mas esses idosos que aparecem no estudo são, justamente, nossos jovens de hoje. Como eles podem se preparar para envelhecer?
Maria Liz: Uma das preparações é dentro da própria família. A inclusão dos avós, não só na criação, mas na vida ativa dos netos. A participação do idosos nas festas familiares é uma forma de espelho, de você perceber a existência de alegria naquela vida, mesmo num corpo envelhecido.
O que falta no jovem de hoje é a educação para o respeito, para as diferenças em todos os aspectos. Do idoso, assim como do cadeirante, da travesti. A gente cultua a juventude. Na Grécia, quem era sábio, quem era senador eram os velhos. Hoje, até a política é um espaço de jovens, cada vez mais.
Se a família está esfacelada, o que sobra para o idoso? As escolas, por exemplo. Você precisa aprender como ser idoso, se preparar para isso, mas nosso país não tem essa cultura de planejamento. Isso vai desde a aposentadoria, que hoje não é só governamental, até os hábitos atuais para evitar doenças como diabetes e hipertensão.
G1: Como achar o meio-termo para que o idoso tenha serviços voltados para as necessidades dele e, ao mesmo tempo, não fique isolado da família, convivendo apenas com outros idosos?
Maria Liz: Como não existe um movimento da sociedade para que isso aconteça, os idosos que têm algum poder aquisitivo fazem o que podem para se manter integrados. Se você puxar papo com um idoso na rua, numa fila, aquilo automaticamente vira uma longa conversa. Ele, em geral, está muito solitário.
Essa circulação em espaço público já favorece a integração. Mas aqui em Brasília, a gente não tem centros desse tipo, então as pessoas acabam recorrendo aos shoppings. Em Manaus, existe um centro de idosos impressionante. Aqui, novamente, só temos hospitais.
Se você for aos centros comunitários para o idoso aqui no DF, dá pena. Estão caindo aos pedaços, com aparelhos velhos. Os idosos se reúnem pra fazer crochê, conversar e dançar. Fora daqui, há espaços com salas de leitura, de cinema. No DF, a gente não olha pra essa questão do envelhecimento.
G1: Um dos primeiros fatores anulados na velhice, geralmente, é a vida afetiva e sexual. A senhora acha que o tabu tende a ficar para trás?
Maria Liz: O tabu é muito arraigado porque nossa sociedade é machista. A longevidade é, principalmente, feminina. E existe uma questão patrimonial, em que os filhos não querem o envolvimento do idoso porque não querem uma divisão maior dos bens.
É uma questão egoísta, que acaba prendendo o idoso onde ele não quer estar. A sexualidade é uma chama de vida, um jeito de você se expor no mundo. Isso é a sexualidade, é a autoestima da pessoa.
E aí, você obrigatoriamente tem que ser a avó, a Dona Benta lá de trás. Essa avó é boicotada pelos próprios filhos, que não aprovam o relacionamento, e acaba se retraindo, se deprimindo. A sexualidade do idoso existe, o carinho existe. Somos seres sociais, isso não muda na velhice.
G1: A senhora falou em depressão, e hoje essa é uma preocupação compartilhada entre os jovens, os chamados "millenials", e os idosos. Como acreditar que uma juventude ansiosa e depressiva se transformará em uma velhice com saúde mental? Há saída para esse cenário?
Maria Liz: Enquanto há vida, há saídas. Esse jovem de hoje está deprimido pela falta de perspectiva. Quando a gente chega na fase idosa, é um outro cenário também sem perspectiva. Vira uma espera da morte.
O que tem que ser repactuado – ou nem isso, porque os pactos já existem – é o uso dos espaços. De novo: no Plano Piloto, o que existe de espaço para idosos são os parques e as Pontos de Encontro Comunitários (PECs). Se chove ou tem sol a pino, não há onde ir.
G1: O envelhecimento também é fator de risco para as doenças degenerativas, como o Alzheimer, o Parkinson e alguns tipos de demência. Os avanços da medicina nos permitem dizer que isso terá sido contornado em 2060?
Maria Liz: Olha, estamos avançando bastante. Temos vários estudos aqui na Universidade Católica, por exemplo, que mostram os impactos na longevidade de uma enzina envolvida no sistema excretor. Faz sentido, porque o que comemos vai desembocar no nosso risco de diabetes, de hipertensão, e assim por diante.
Nos casos de Alzheimer, temos avançado bastante para detectar a influência do estresse, da alimentação, mas isso não é conclusivo ainda. E não é conclusivo porque os estudos sobre o idoso são muito recentes.
A gente estudou muito o homem, depois a criança, depois a mulher e por último o idoso, já no final do século 20. Essa preocupação é sempre ligada à mão de obra. Começou-se a estudar a criança para ter mão de obra barata, essa preocupação com a mortalidade infantil veio por uma questão produtiva.
G1: Falando em produtividade, o idoso também está no centro dessa pauta. Com a discussão da reforma da Previdência, estamos vendo esforços para incluir a velhice na atividade produtiva, esticar a idade ativa. Dá pra inserir esse idoso mais longevo na produção sem impor um fardo a ele?
Maria Liz: O preconceito que eu já enfrento, apesar de ser uma idosa jovem, de 63 anos, é assim: o jovem me diz "por que você não se aposenta?", como se eu estivesse tirando a vaga dele.
Isso passa pela compreensão de que a experiência de alguém naquela área o torna sênior naquilo. Se ele quer continuar trabalhando, tem esse direito.
O que não podemos é ser impositivos. Há muitos anos, eu estive em Genebra (Suíça) para um congresso de envelhecimento, e houve uma passeata de mulheres querendo estender a produtividade até os 70 anos. Isso, há 20 anos, quando aqui a nossa idade mínima era de 50 [anos para a aposentadoria feminina].
Primeiro, eu nem acredito que a conta [da Previdência] "não feche" por si só, porque há o fator da corrupção. Segundo, acho que o idoso pode, sim, trabalhar até quando quiser. Estender isso é saudável pro idoso e, hoje em dia, ninguém entra no mercado de trabalho tão novinho.
Mas acho que é preciso um escalonamento. Há modos e modos de integrar, mas quando se faz algo para a população como um todo, isso vem como algo obrigatório. Todo mundo é colocado junto. Alguém de 60 anos é idoso pra gente por um motivo: somos ainda subdesenvolvidos. Tiramos milhões da miséria, mas e o resto?
G1: Há um recorte de gênero nesse envelhecimento? Quais são as diferenças desse impacto para homens e mulheres?
Maria Liz: Existem vários fatores que levam a mulher, em média, a viver mais que o homem. Um desses fatores é que, mesmo com a mudança social, ela fica mais no lar, fica menos exposta. Se você vai a um encontro de idosos, encontra dez idosas e um idoso. Os dados do IBGE confirmam essa impressão geral.
Se os dois chegam à velhice, existe uma diferença muito clara. O homem, por exemplo, vai viver a sexualidade quer os filhos queiram, quer não. A mulher é vetada, vai se voltando para dentro de si, se conformando.
Como a sociedade escolheu esteticamente o jovem, o homem idoso que vive essa sexualidade volta os olhos para a mulher jovem. A mulher idosa não deseja, e não está também no alvo do desejo. A mulher idosa é a viúva, ou a mãe solteira e solitária.
Na academia, há outro exemplo. Você vê muitos professores universitários homens, mais idosos, e menos mulheres. O reconhecimento da sapiência, da sabedoria, também é diferenciado. E isso porque a sociedade, a ciência e a história são machistas.
G1: Em 2017, um outro estudo do IBGE constatou que o DF era a unidade da Federação campeã em atividade física: 50,4% dos nossos adultos se exercitam de alguma forma. Mas a pesquisa mostra que o índice despenca na velhice. No país inteiro, só 13% das pessoas com 60 anos ou mais fazem atividade. Como manter esse hábito na velhice?
Maria Liz: O jovem, em geral, faz a atividade física para modelar o corpo, por estética. A saúde é um efeito colateral, e às vezes nem isso, porque se toma tanta coisa, tanta substância, né?
Mas nessa fase, é fundamental para o planejamento da saúde. Se você 'come e dorme', vem a obesidade, e com ela a diabetes e a hipertensão, e com elas o risco cardíaco.
Agora, não adianta o velho ir para a academia de jovens. Eu, por exemplo, vou a uma academia que só tem gente de 55 anos para lá. Se o idoso vai a uma academia comum, faz um exercício errado e tem dor, ele não volta mais. Não adianta nada.
O exercício é fundamental para o idoso porque mantém a tonicidade muscular e o equilíbrio, que são fundamentais para uma velhice ativa. Agora, o exercício sem acompanhamento é pernicioso. É outro problema dessas academias populares nas ruas. Cadê o profissional para te orientar? Tem uma plaquinha com desenhos, mas será que você está ganhando massa? Está tonificando?
G1: Bom, a gente desfiou um pequeno rosário de desafios para a velhice das próximas décadas. Acho que é justo a gente ajudar as próximas gerações. Algum conselho sobre como envelhecer bem?
Maria Liz: Envelhecer bem é ter muitos amigos, cultivar os amigos. Quando você tem muitos amigos, você não vai na solidão. Acompanhar as mudanças tecnológicas, se inserir enquanto é tempo. Você não "foi" daquele tempo, você "é" desse tempo.
Acompanhar a sociedade e cultivar amigos, porque são esses que vão ficar. Não são os seus filhos, são seus amigos que vão envelhecer com você.
Além disso, fazer trabalho voluntário, que não é uma cultura no nosso país. Tem tempo? Vá a uma instituição de idosos, conviva com eles. Não gosta de velho? Vá a uma outra, de crianças, de cachorros. Tem que participar da sociedade. É obrigatório viver.
Faça uma associação de amigos, vá morar junto, se prepare pra isso. Eu estou fazendo isso com um grupo de amigos, estamos comprando uns apartamentos pequenos no mesmo lugar, cada um na medida de sua capacidade. Quando eu precisar de algo, eles vão estar lá.
Veja mais notícias sobre a região no G1 DF.
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