Camilla Veras Mota
Onze moradores da cidade de Barra Longa (MG) que realizaram exames toxicológicos no ano passado foram diagnosticados com intoxicação por níquel, segundo relatório do Instituto Saúde e Sustentabilidade enviado ao Ministério Público, ao qual a BBC Brasil teve acesso. Em metade dos participantes os níveis de arsênio no sangue estavam alterados.
Esse é o primeiro diagnóstico nesse sentido entre populações afetadas pelo rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, em novembro de 2015.
Por causa do documento, a Procuradoria da República em Minas Gerais enviou no início deste mês ofícios às secretarias de saúde de Barra Longa e dos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, ao Ministério da Saúde e à Fundação Renova, que hoje responde pelas ações de reparação da mineradora Samarco, requisitando um estudo aprofundado das regiões afetadas pelo desastre para monitorar a presença de metais pesados e suporte para o tratamento daqueles já diagnosticados.
O relatório destaca que, pelo número reduzido de participantes, ele não é suficiente para estabelecer uma relação causal entre a intoxicação e o desastre de Mariana, mas ressalta que os achados tornam prementes estudos mais profundos. A Renova diz estar empenhada em avaliar os riscos à saúde e diz que abriu há 15 dias uma chamada técnica, dentro de uma série de estudos epidemiológicos e toxicológicos em toda a área impactada, "em um novo esforço para investigar a situação".
O rompimento da barragem matou 19 pessoas e despejou no meio ambiente 34 milhões de metros cúbicos de rejeito de minério, que desceram 55 km pelo rio Gualaxo do Norte até o Rio do Carmo e outros 22 km até o Rio Doce.
O vazamento soterrou os distritos rurais de Bento Rodrigues, Paracatu e Gesteira e invadiu Barra Longa, a 60 km de Mariana. A avalanche de lama percorreu 663 km de cursos d'água e atingiu 39 municípios em Minas Gerais e no Espírito Santo – o maior desastre ambiental do país.
Primeira pesquisa
A iniciativa do Instituto Saúde e Sustentabilidade, uma organização da sociedade civil, de realizar os exames toxicológicos em moradores de Barra Longa – que soma 5.720 habitantes – surgiu por causa de uma primeira pesquisa, um questionário de autoavaliação aplicado entre outubro de 2016 e janeiro de 2017 em 507 indivíduos.
Nela, as queixas de adoecimento após o desastre eram generalizadas. Dentre os problemas relatados estavam principalmente aqueles de origem respiratória, afecções de pele e transtornos mentais.
Ao contrário do que aconteceu com os distritos rurais de Bento Rodrigues e Paracatu, cujos moradores foram transferidos para Mariana depois que seus vilarejos foram soterrados pelo rompimento da barragem, em Barra Longa os atingidos, em sua maioria, não foram desalojados.
Eles permaneceram na cidade durante sua reconstrução. Parte da lama foi removida no decorrer de um ano após o desastre, parte foi aterrada no campo de futebol e no parque de exposições, parte foi transformada em bloquete de calçamento e parte secou, virou pó e se espalhou pela cidade com o fluxo de caminhões e veículos pesados.
A exposição à poeira, ainda conforme o relatório, pode estar ligada a alguns dos sintomas descritos pela população. Metais como o níquel são absorvidos também pela pele e por inalação.
Procurada pela reportagem, Evangelina Vormittag, presidente do instituto, disse preferir não se manifestar por uma questão de sigilo médico.
Resultados dos exames
Os exames de sangue foram realizados em apenas 11 moradores por falta de recursos da organização, selecionada em um edital da ONG ambiental Greenpeace que buscava projetos para dimensionar o impacto do desastre na saúde de populações atingidas.
As amostras de sangue dos 11 participantes, que tinham entre 2 e 92 anos na época da coleta, em março de 2017, foram enviadas ao Laboratório de Toxicologia e Essencialidade de Metais da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto, da USP, e analisadas apenas em janeiro deste ano. O atraso decorreu de um problema técnico no equipamento do laboratório, que precisou de reparos.
Foram pesquisados 13 metais. Dos 11 participantes, todos apresentaram aumento de níquel no sangue e 10, diminuição de zinco. Os exames para níquel foram repetidos em dois laboratórios.
O zinco participa de uma série de processos bioquímicos do corpo, da síntese e degradação de carboidratos, lipídeos e proteínas ao funcionamento adequado do sistema imunológico. Tanto sua redução quanto seu excesso são um problema para a saúde. Uma das hipóteses para a diminuição da absorção do zinco é sua interação com o níquel. O relatório destaca, porém, que essa questão deve ser investigada.
Do total de participantes, três apresentaram pequeno aumento de arsênio no sangue e, em cinco pessoas, o nível de arsênio encontrava-se normal, porém no limite superior da normalidade.
O relatório ressalta que, como há presença de arsênio na região, tradicionalmente mineradora, demonstrada em estudos de análises da água, sedimento, solo e em peixes, antes e depois do desastre, é possível que a população já estivesse exposta ao metal antes do rompimento.
Mas acrescenta que não há relatos, contudo, de acúmulo de níquel na atividade corriqueira da mineração de ferro – e que estudos recentes, feitos após o desastre, evidenciaram altas concentrações de vários metais no ambiente, dentre eles o níquel, e sua bioacumulação em diferentes espécies de girinos.
Um explicação possível para esse quadro, levantada pela população local, seria a de que, apesar de a lama que estava acumulada na barragem não ser originalmente formada por níquel, ela pode ter incorporado o metal no trajeto de 60 km até Barra Longa, já que destruiu as cidades de Bento Rodrigues e Paracatu e veio arrastando uma grande quantidade materiais.
"O diagnóstico de intoxicação por níquel é preocupante por ocorrer após um grave episódio de contaminação do meio ambiente por lama tóxica de rejeitos de mineração de ferro", diz o texto, que ressalta, entretanto, que não é possível relacionar os resultados dos exames de sangue com o desastre de Mariana.
Ele recomenda estudos mais aprofundados para esclarecer essa questão e verificar se há um quadro de contaminação.
"As características dos dois estudos e tamanho da amostra de 11 indivíduos não permitem conclusões de intoxicação para a população do município, mas trazem importantes evidências e subsídios para a continuidade das pesquisas. Estudos de risco toxicológico e epidemiológico, com uma população representativa maior, deverão ser conduzidos para levantar hipóteses e confirmá-las, de modo a elucidar as diversas dúvidas apontadas."
'A médica falou pra gente sair de Barra Longa'
Um dos 11 diagnósticos é de Sofya Marques, que tinha apenas nove meses quando, na madrugada de 6 de novembro de 2015, uma avalanche de lama invadiu Barra Longa.
Hoje com três anos, ela vive à base de antialérgicos, corticoides e broncodilatadores, tem erupções na pele periodicamente e sente uma dor forte na perna que os médicos não conseguem explicar.
Em janeiro, os resultados dos exames toxicológicos mostraram que Sofya tem uma concentração de 12,78 microgramas por litro de níquel no sangue, três vezes mais do que o limite máximo do intervalo de referência, que vai de 0,12 a 3,9 microgramas por litro.
O zinco, por sua vez, está significativamente abaixo do limite mínimo do intervalo, que vai de 3.518 a 12.294 microgramas por litro – em 1.302 microgramas por litro.
Há duas semanas, ela esteve no Instituto da Criança dos Hospital das Clínicas. O acompanhamento faz parte do trabalho conduzido pelo Instituto Sustentabilidade. A viagem de ônibus e as despesas em São Paulo foram custeadas em parte pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que presta assessoria para as populações atingidas.
Depois de fazer uma série de exames complementares, Sofya – acompanhada da mãe, Simone Silva – passou por uma consulta de mais de uma hora com uma das especialistas do instituto.
"A médica falou pra gente sair de Barra Longa", diz Simone.
Conforme o relato da mãe, Sofya precisará fazer acompanhamento clínico periódico até o fim da vida e estar atenta a possíveis problemas nos órgãos devido ao acúmulo de metais. A sugestão de deixar a cidade seria para que ela não se expusesse mais a uma potencial contaminação.
A BBC Brasil entrou em contato com o Hospital das Clínicas, que afirmou que seus profissionais não se manifestam sobre casos de pacientes específicos.
"Como a gente vai sair daqui? Eu nasci e cresci em Barra Longa, não tenho pra onde ir", ela afirma. "Meu marido ficou desesperado, falou pra gente ir pra Rio Doce, pra Ouro Preto, nem que fosse pra passar fome lá, mas não tem a menor condição", acrescenta.
Hoje, Simone ganha R$ 400 por mês dando aulas em uma escola em um município próximo a Barra Longa. Seu marido trabalha em uma fábrica de rações. Ela diz que a família tem dificuldade para arcar com os custos do tratamento de Sofya, mesmo depois que a Fundação Renova passou a pagar parte de suas consultas com um especialista no município de Ponte Nova, vizinho de Barra Longa.
A BBC Brasil contou a história da família em reportagem publicada em novembro de 2017, quando o desastre de Mariana completou 2 anos.
Simone se queixa de descaso na atuação da Prefeitura e da Secretaria de Saúde do município em relação aos casos de adoecimento da população e também na da Fundação Renova, com a qual, segunda ela, os moradores de Barra Longa têm um diálogo difícil.
Ela afirma que a família tem contato direto com a poeira de rejeito há mais de um ano, já que mora na rua Santa Teresinha, próxima ao campo de futebol do município, que deveria ser aterrado com lama de rejeito e que continua em obras.
Qualidade do ar
Através de sua assessoria de imprensa, a Fundação Renova afirma que "segue monitorando a qualidade do ar no município" e que "os resultados atuais estão dentro dos parâmetros exigidos pela legislação brasileira".
"Desde fevereiro de 2016, duas estações de monitoramento automático estão instaladas em Barra Longa. O monitoramento automático fornece 24 resultados por dia por parâmetro, totalizando 5.760 medições por mês. Em nenhum deles há dados que comprometam a saúde das pessoas das áreas de abrangência dos monitoramentos".
Em relação às demandas feitas pelo Ministério Público Federal – confirmadas à reportagem pelo procurador Edmundo Antônio Dias Netto Junior –, a Fundação diz que "está empenhada em avaliar os eventuais riscos à saúde humana decorrentes do rompimento da barragem de Fundão" e que "em um novo esforço para investigar a situação, dentro de uma série de estudos epidemiológicos e toxicológicos em toda a área impactada, abriu há 15 dias uma chamada técnica".
A secretária de Saúde do município de Barra Longa, Raquel Aparecida, informou que o relatório foi debatido nos dias 19 e 20 de março em reunião da Câmara Técnica de Saúde do Comitê Interfederativo (CIF) - criado em 2015, logo após o desastre, o colegiado tem representantes do Ibama, da União, dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo e dos municípios afetados.
Em nota, ela afirma que o município requereu da Fundação Renova apoio no fortalecimento da política do SUS, disponibilizando três médicos clínicos para o acolhimento dos munícipes que procurarem os serviços da atenção primária. "Entendemos que, como se trata de um estudo não conclusivo, seria temerário alarmar a população em relação ao estudo, devendo aguardar a conclusão da pesquisa para a deliberação de quais procedimentos serão adotados caso seja necessário."
A Secretaria de Saúde de Minas declarou que só irá se manifestar em relação aos questionamentos do MPF depois que responder ao órgão e afirmou que "disponibilizará ao município de Barra Longa todo o apoio necessário para a realização do acompanhamento dos cidadãos que apresentaram alteração nos exames realizados", bem como a realização de tratamento adequado.
A Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo informou que ainda não recebeu o ofício, mas que participa do Comitê Interfederativo (CIF), que já propôs a ampliação do Programa de Monitoramento da Qualidade da Água para Consumo Humano e o estabelecimento bases mínimas para os estudos epidemiológicos e toxicológicos da população atingida diretamente e indiretamente.
O Ministério da Saúde informa que recebeu o ofício do MPF na sexta-feira e que está solicitando esclarecimentos por parte dos autores da pesquisa.
A pasta acrescenta que tem prestado assessoria técnica às Secretarias da Saúde de Minas Gerais e do Espírito Santo quanto à adoção de medidas para a organização das ações de primeira resposta ao desastre e dado as orientações necessárias a serem adotadas no período pós-desastre. "As vigilâncias dos Estados e municípios continuam realizando o monitoramento da qualidade da água para consumo humano, assim como os responsáveis pelo abastecimento de água dos municípios atingidos."
Quanto ao impacto na saúde das populações locais, o ministério afirma que recomendou à Fundação Renova a realização de estudos epidemiológicos e de avaliação de risco à saúde humana.
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