Mariana Santos
Quando deixou Governador Valadares (MG), em março deste ano, disposta a atravessar ilegalmente a fronteira dos EUA com o marido, a jovem Rayane Araújo Moraes, então com 17 anos, sonhava em juntar dinheiro e voltar ao Brasil cinco anos depois para construir uma vida financeiramente mais tranquila.
Eles acertaram com coiotes o pagamento de US$ 15 mil (cerca de R$49 mil) cada e, depois de uma longa viagem, chegaram à fronteiriça Ciudad Juárez - conhecida porta de entrada de drogas e de imigrantes ilegais nos Estados Unidos. Foram três horas de caminhada e outras mais numa van, até o grupo de 12 pessoas ser descoberto pela polícia americana.
O marido de Rayane foi imediatamente levado para um presídio no Estado do Texas. De lá, o rapaz de 29 anos seria deportado um mês depois.
Ela, no entanto, foi transferida para um abrigo de menores a 2 mil quilômetros de distância dali, em Chicago. "Eu nem sabia para onde estava indo, só me falaram dentro do avião", disse a jovem, que não fala inglês, à BBC Brasil.
O abrigo de Chicago - um dos principais do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS) americano - recebeu pelo menos sete garotas brasileiras durante o último mês de agosto, segundo relatos de jovens que passaram por lá recentemente.
Elas relatam confisco de livros em português e comida insuficiente para todos os detentos. Dizem, ainda, que sofreram pressão para não falar sobre o tratamento que receberam no local.
'Geleira'
Em 21 de maio, pouco mais de um mês após ser enviada para o abrigo, Rayane completou 18 anos. Enquanto esperava a conclusão do processo de liberação, a garota foi transferida para uma prisão comum - abrigos acolhem jovens apenas até os 17.
Ela foi informada, no entanto, de que a entrada no presídio só poderia ser feita em dia útil e, como seu aniversário caiu num sábado, foi transferida para a chamada "geleira": uma cela isolada, com apenas uma coberta fina e sem direito a banho.
"Passei bastante frio lá", relembra.
Durante quase dois meses no presídio de McHenry, próximo a Chicago, Rayane foi a única brasileira na ala das "pulseiras verdes" - que identificam presidários menos perigosos. Como a maioria das colegas de cárcere eram latinas, acabou aprendendo um pouco de espanhol.
Mas ela diz que as condições oferecidas no presídio de adultos eram, em muitos aspectos, melhores do que no abrigo para menores.
"As restrições no abrigo são muito piores do que na prisão. No abrigo, todas éramos obrigadas a fazer as atividades determinadas por eles, em horários específicos. Mesmo quando estava frio, se houvesse atividade externa de 40 minutos, como um jogo, tínhamos que ficar lá fora", afirma.
"Na prisão, eu podia ficar quieta no meu canto, se quisesse, e tirar um tempo para ler um livro."
Segundo a mineira, os adolescentes do abrigo só tinham direito a três refeições, em quantidade e horários fixos - e não podiam comprar nenhuma alimentação extra, como ocorria na dentenção de adultos.
As conversas com a família no abrigo também eram limitadas e tinham que ser acompanhadas por alguém que falasse português, enquanto no presídio ela chegou a falar com os familiares usando uma câmera.
Desconfiança
"Depois de um tempo lá dentro, você começa a enlouquecer", diz Anna Beatriz Theophilo, que passou 15 dias no abrigo de Chicago neste ano.
"É uma prisão sem grades no quarto. Mal podíamos conversar. Os livros em português levados para nós pelo consulado brasileiro foram confiscados, disseram que iam avaliar se era 'adequado' para a gente."
"Me senti, em muitos momentos, humilhada", afirma.
Anna Beatriz foi detida na mesma época que Rayane, mas seu caso era bastante diferente: ela tinha visto americano válido e já havia estado no país outras vezes.
Com 17 anos na época, a garota deixou a família no Tocantins e viajou sozinha para os EUA, onde passaria dois meses com uma amiga em Boston. Em seguida, iria para o Canadá, onde se encontra no momento, para estudar francês.
Seus planos, porém, esbarraram na imigração de Detroit. Agentes da fronteira questionaram insistentemente se havia algum "homem" esperando por ela nos EUA e a pressionavam até mesmo por estar chorando.
Segundo sua família, os agentes ainda desconfiaram que Anna Beatriz pudesse estar tentando entrar no país como estudante, mas com visto de turista.
Pouca comida
O drama da paulista Anna Stéfane Radeck, que também tinha visto e passagens anteriores pelos EUA, foi ainda mais longo.
Sem data certa para voltar ao Brasil, ela também chegou desacompanhada em Detroit, de onde iria para a Flórida, encontrar uma tia que mora no país.
Após quase 20 dias sob tutela do governo americano - que incluíram seu aniversário de 17 anos -, no abrigo de Chicago, uma juíza do Tribunal de Imigração concedeu autorização para que ela pudesse voltar para São Paulo.
A BBC Brasil acompanhou o desfecho do caso em Chicago na semana passada, quando a garota compareceu à audiência escoltada por uma funcionária do abrigo. Anna Stéfane deixou o tribunal calada, com os olhos marejados e agarrada à mãe, Liliane Carvalho, que viajou aos EUA para buscá-la.
Apesar da autorização, ela teve que voltar ao abrigo. As duas ainda tiveram que esperar uma última etapa burocrática do processo e só se veriam novamente dali a dois dias, já no aeroporto.
Ao deixar os Estados Unidos, a menina revelou aos pais que não havia comida suficiente para todos os adolescentes detidos e que sofrera pressão para não dar detalhes do tratamento que recebia durante as poucas vezes em que falou com a família ao telefone. Segundo a mãe, ela está bastante abalada.
Questionada sobre as declarações das adolescentes, a Administração para Crianças e Famílias (ACF) - órgão do departamento responsável pelos abrigos - afirmou por e-mail que todos os estabelecimentos que recebem menores são licenciados pelo Estado e "atendem exigências estabelecidas para garantir alto nível de qualidade no cuidado prestado".
De acordo com o órgão, os abrigos contam com "salas de aula, assistência médica, áreas de recreação e socialização, treinamento vocacional, serviço de saúde mental e acesso a orientação legal, quando se aplica ao caso".
As administrações desses locais devem, ainda "realizar seus serviços de modo sensível à idade, cultura, idioma nativo e necessidades de um menor desacompanhado".
Segurança nacional
Dias após a detenção de Anna Stéfane, outra brasileira de 17 anos também foi barrada pela imigração e mandada para Chicago horas depois de deixar as Bahamas. Em 22 de agosto, a roraimense Liliana Matte desembarcou em Miami em um jato particular com amigos da família.
De acordo com sua mãe, Anaíde Matte, as duas iriam se reencontrar nos EUA dali a poucos dias - Anaíde estava na Venezuela, onde fez uma cirurgia para tratar a visão. Eleita Miss Brazil Model 2015, Liliana tinha passagem marcada para voltar ao Brasil no dia 1º de setembro para passar a faixa.
"Eles queriam que ela tomasse dez vacinas. De início ela se recusou, mas sob coerção, acabou aceitando", diz Anaíde, que agora se encontra em Chicago para tentar acelerar a liberação da filha. A audiência ainda não tem data marcada.
A advogada Raquel Bicudo Gross, que defendeu Anna Stéfane, explica que os agentes dos EUA nas fronteiras são treinados para ser firmes na repressão ao tráfico de drogas, armas, sexo infantil e prostituição nos postos de imigração. Por isso, qualquer mínima suspeita pode servir de motivo para impedir alguém de entrar.
"Eles (os agentes) têm esse direito, afinal a entrada no país é uma questão de segurança nacional", afirma.
Números imprecisos
Questionado pela BBC Brasil sobre o número de crianças e adolescentes brasileiros em abrigos nos Estados Unidos, o Itamaraty afirmou não ter autorização das famílias "para divulgar dados específicos sobre os casos envolvendo esses menores".
As garotas entrevistadas pela reportagem dizem que em agosto havia pelo menos sete brasileiras em Chicago. Os motivos da detenção e as idades das menores são desconhecidos, assim como o tempo médio que elas permanecem nos abrigos.
Em nota, o Itamaraty afirmou que, apesar de haver outros abrigos no território americano, o mais comum é o envio dos jovens para Chicago. O ministério disse estar mapeando outros centros que também possam receber menores brasileiros.
A ACF também não informa o número exato de brasileiros em seus abrigos, afirmando que a quantidade é muito baixa em comparação com outras nacionalidades. Dos 33.726 menores que passaram por abrigos entre outubro de 2014 e setembro de 2015, quase metade (45%) veio da Guatemala, 29% de El Salvador, 17% de Honduras e 6% do México. Os menores brasileiros são uma parcela dos 3% restantes, que incluem todas as outras nacionalidades.
Ainda segundo o órgão, grande parte dos jovens apreendidos chega aos EUA fugindo de condições de vida precárias, exploração e violência em seus países de origem. Muitos buscam se reunir com as famílias que vivem, não raro ilegalmente, nos Estados Unidos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário