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domingo, 23 de fevereiro de 2020

CENTENÁRIO DO AUTOR DE "MEU PÉ DE LARANJA LIMA" EVOCA A RELEVÂNCIA DE SUA PRODUÇÃO LITERÁRIA

No próximo mês, a famosa obra de José Mauro de Vasconcelos ganhará uma versão em HQ

Fonte:/Verso
O centenário de nascimento é comemorado no dia 26 de fevereiro
Foi junto do pai que Gabriel Pioner Machado leu "O Meu Pé de Laranja Lima". E, embora tenham se passado dois anos desde o primeiro contato com o livro, o estudante ainda recorda de detalhes importantes daqueles preciosos momentos de imersão. Era quando uma grave voz lhe contava o passo a passo da narrativa, fina camada de desassossego que ia contaminando os ouvidos e a mente ainda jovem, de 10 anos.
O garoto destaca Zezé, o protagonista meio levado do romance, e as dificuldades de sua rotina. Lembra da aflição. "Ele tinha seis anos, era de uma família muito pobre, e não era o filho preferido. Apanhava muito de alguns parentes, menos de Glória, irmã mais velha, que cuidava bastante dele", situa, com precisão.
"Ele também tinha um pé de laranja lima no quintal, chamado de minguinho ou xururuca, onde brincava e com quem 'conversava', porque ninguém se importava muito com Zezé", completa.
Daí em diante, os fatos do livro narrados por Gabriel não aparecem neste texto. É que podem facilmente ser completados por quem já se permitiu mergulhar na obra-prima de José Mauro de Vasconcelos, escritor que, em 26 de fevereiro de 1920, nascia em Bangu, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, e cuja trajetória é lembrada pelo Verso neste seu centenário.
Dono de uma escrita confessional - correspondente à oralidade dos impressos, das canções de rádio e romances sentimentais - José pode facilmente ser definido como autor da ternura. Filho de imigrante português, foi criado pelos tios em Natal (RN).
Com 15 anos, retornou para o Rio, onde trabalhou em diversos empregos para se sustentar. Além disso, iniciou o curso de Medicina, contudo abandonou a universidade, e ainda recebeu uma bolsa para estudar na Espanha, mas também não se adaptou, desta vez à vida acadêmica.
Com apenas 22 anos, publicou o primeiro livro, "Banana Brava", resultado da viagem pelos rios da região do Araguaia. Daí em diante, emplacou outros, como "Barro Branco", "Longe da Terra", "Vazante", "Arara Vermelha" e "Arraia de Fogo". Mas foi com "Rosinha Minha Canoa" que arrebatou a crítica, e com "O Meu Pé de Laranja Lima" que conquistou o coração de milhões de leitores.
Conforme Andréa Borges Leão - professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará e Especialista em Literatura, Livro e Imprensa Juvenis - esse best-seller do autor, junto a outras obras sob sua pena, se inscreve no desenvolvimento de uma indústria do livro produtora de padrões universais que justificam a exportação mundial da literatura brasileira, antes mesmo da telenovela.
"O mercado em boa parte produtor de sentimentalismos, melodramas e aventuras prepara o caminho para o sucesso de vendas e a adesão do público a obras autobiográficas como 'O Meu Pé de Laranja Lima'', situa a professora, que pesquisa a obra traduzida de José Mauro de Vasconcelos desde 2013.
"Não à toa, do ponto de vista do sistema de classificação dos textos operado pelos estudos literários, o autor ocupa uma posição marginal. Esse sistema não vislumbra correspondências entre sucesso comercial e legitimidade literária".
Abrangência
Apesar de "O Meu Pé de Laranja Lima" ser a obra mais famosa do autor, José também trabalhou com filmes - até falecer, em 1984. De forma a ampliar o olhar sobre a produção dele, Andréa sugere a leitura dos dois romances que formam, junto ao best-seller de 1968, a trilogia do autor: "Doidão", publicado em 1963, apresenta ao público o protagonista Zezé adolescente; e "Vamos Aquecer o Sol", publicado em 1964.
"Acho importante falar dele para se entender o modo como a literatura se massificou no Brasil, de como o popular se encontrou com o erudito na nossa produção escrita. Na minha opinião, ele foi um telenovelista da escrita, muito em parte porque 'O Meu Pé de Laranja Lima' foi adaptado para o cinema, entrou no teatro e também na novela de televisão da Tupi, em 1970 (escrita por Ivanir Ribeiro e dirigida por Carlos Zara)", completa.
Ainda com toda essa amplitude, fato é que, em 1969, quando estouraram as vendas do livro, o Ministério da Educação o proibiu de ser adotado nas escolas, argumentando erros de português no texto.
"O trabalho dos tradutores profissionais e a boa recepção em outros países da obra, inclusive, concentrou a crítica especializada brasileira no debate se José Mauro pertencia ou não à literatura. No romance sentimental que dava a palavra às árvores, ponderava o crítico Eduardo Portella, José Mauro construía uma literatura ingênua e sentimentaloide", avalia Andréa.
"Mesmo assim, não acredito que a fortuna crítica do escritor tenha se modificado muito ao longo dos anos. Acho que ele escrevia para os leitores e, ao longo dos anos, são milhares deles espalhados pelo mundo que mantêm suas obras nos catálogos das editoras. São as comunidades internacionais que conferem prestígio e reconhecimento literário à obra de José Mauro de Vasconcelos", completa.
Lembranças
Também professor da UFC, Cavalcante Júnior igualmente tece comentários acerca do autor. Ainda mais porque o conheceu muito cedo, quando tinha sete anos de idade e cursava a segunda série (hoje terceiro ano) do Ensino Fundamental.
"'O Meu Pé de Laranja Lima' foi o primeiro livro com capítulos que li na minha vida e isso é um marco na trajetória de um leitor. Guardo o exemplar até hoje na minha biblioteca, com lugar especial na prateleira e no coração", comenta.
"Fui atravessado pelo sentimento de uma criança que vivia a violência física e emocional dentro de casa, o Zezé, solitário e indefeso. Contava somente com um amigo, um velho português, e que morre atropelado. Cedo na minha vida fui inundado pelos sentimentos das crianças".
Na visão de Cavalcante, a literatura de José Mauro é emotiva e evoca sentimentos que engrandecem, chamando a atenção para temáticas como amor, alegria, compaixão e solidariedade.
"Um outro título do autor, 'O Palácio Japonês' (1969), escrito logo depois de 'O Meu Pé de Laranja Lima', é convite à estética do sensível. Nele, o menino Pedro adverte: 'Não é dado a todo mundo a maravilha de ver todas as maravilhas'", poetisa.
Quanto ao que espera das comemorações do centenário do autor, o professor ainda deseja ver o resgate do valor da literatura que ele criou de modo tão singular, lida por milhares de brasileiros.
"O fato é que nunca prestamos a José Mauro a devida homenagem por sua obra, inclusive ganhadora do Prêmio Jabuti de 1967, com o livro 'As confissões de Frei Abóbora', na categoria de melhor romance. Uma literatura das emoções humanas foi o que ele produziu, em grande parte com os episódios da sua própria existência penosa. A sua literatura nos faz sentir como foi o retorno a si mesmo".

Até agora, de forma a contemplar a efeméride, foi anunciado que "O Meu Pé de Laranja Lima" ganhará uma versão em HQ no próximo mês. Com adaptação de Luiz Antônio Aguiar e ilustração de Franco de Rosa e equipe, o lançamento é mais uma ação do projeto da Editora Melhoramentos de resgatar a obra de José Mauro de Vasconcelos, sempre singela, afetuosa e, na mesma medida, incontornável.

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